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| - I Houve tempo em que os meus olhos Gostavam do sol brilhante, E do negro véu da noite, E da aurora cintilante. Gostavam da branca nuvem Em céu de azul espraiada, Do terno gemer da fonte Sobre pedras despenhada. Gostavam das vivas cores De bela flor vicejante, E da voz imensa e forte Do verde bosque ondeante. Inteira a natureza me sorria! A luz brilhante, o sussurrar da brisa, O verde bosque, o rosicler d'aurora, Estrelas, céus, e mar, e sol, e terra, D'esperança e d'amor minha alma ardente, De luz e de calor meu peito enchiam. Inteira a natureza parecia Meus mais fundos, mais íntimos desejos Perscrutar e cumprir; - almo sorriso Parecia enfeitar co'os seus encantos, Com todo o seu amor compor, doirá-lo, Porque os meus olhos deslumbrados vissem-no, Porque minha alma de o sentir folgasse. Oh! quadra tão feliz! - Se ouvia a brisa Nas folhas sussurrando, o som das águas, Dos bosques o rugir; - se os desejava, - O bosque, a brisa, a folha, o trepidante Das águas murmurar prestes ouvia. Se o sol doirava os céus, se a lua casta. Se as tímidas estrelas cintilavam, Se a flor desabrochava envolta em musgo, - Era a flor que eu amava, - eram estrelas Meus amores somente, o sol brilhante, A lua merencória - os meus amores! Oh! quadra tão feliz! - doce harmonia, Acordo estreme de vontade e força, Que atava minha vida à natureza! Ela era para mim bem como a esposa Recém-casada, pudica sorrindo; Alma de noiva - coração de virgem, Que a minha vida inteira abrilhantava! Quando um desejo me brotava n'alma, Ela o desejo meu satisfazia; E o quer que ela fizesse ou me dissesse, Esse era o meu desejo, essa a voz minha, Esse era o meu sentir do fundo d'alma, Expresso pela voz que eu mais amava. II Agora a flor que m'importa, Ou a brisa perfumada, Ou o som d'amiga fonte Sobre pedras despenhada? Que me importa a voz confusa Do bosque verde-frondoso, Que m'importa a branca lua, Que m'importa o sol formoso? Que m'importa a nova aurora, Quando se pinta no céu; Que m'importa a feia noite, Quando desdobra o seu véu? Estas cenas, que amei, já me não causam Nem dor e nem prazer! - Indiferente, Minha alma um só desejo não concebe, Nem vontade já tem!... Oh! Deus! quem pôde Do meu imaginar as puras asas Cercear, desprender-lhe as níveas plumas, Rojá-las sobre ó pó, calcá-las tristes? Perante a criação tão vasta e bela Minha alma é como a flor que pende murcha; É qual profundo abismo: - embalde estrelas Brilham no azul dos céus, embalde a noite Estende sobre a terra o negro manto: Não pode a luz chegar ao fundo abismo, Nem pode a noite enegrecer-lhe a face; Não pode a luz à flor prestar mais brilho Nem viço e nem frescor prestar-lhe a noite! III Houve tempo em que os meus olhos Se extasiavam de ver Ágil donzela formosa Por entre flores correr. Gostavam de um gesto brando, Que revelasse pudor; Gostavam de uns olhos negros, Que rutilassem de amor. E gostavam meus ouvidos De uma voz - toda harmonia, - Quer pesares exprimisse, Quer exprimisse alegria. Era um prazer, que eu tinha, ver a virgem Indolente ou fugaz - alegre ou triste, Da vida a estreita senda desflorando Com pé ligeiro e ânimo tranqüilo; lmpróvida e brilhante parecendo Seus dias desfolhar, uns após outros, Como folhas de rosa; - e no futuro - Ver luzir-lhe somente a luz d'aurora. Era deleite e dor vê-la tão leda Do mundo as aflições, angústias, prantos Afrontar co'um sorriso; era um descanso Interno e fundo, que sentia a mente, Um quadro em que os meus olhos repousavam, Ver tanta formosura e tal pureza Em rosto de mulher com alma d'anjo! IV Houve tempo em que os meus olhos Gostavam de lindo infante, Com a candura e sorriso Que adorna infantil semblante. Gostavam do grave aspecto De majestoso ancião, Tendo nos lábios conselhos, Tendo amor no coração. Um representa a inocência, Outro a verdade sem véu; Ambos tão puros, tão graves, Ambos tão perto do céu! Infante e velho! - princípio e fim da vida! - Um entra neste mundo, outro sai dele, Gozando ambos da aurora; - um sobre a terra, E o outro lá nos céus. - O Deus, que é grande, Do pobre velho compensando as dores, O chama para si; o Deus clemente Sobre a inocência de continuo vela. Amei do velho o majestoso aspecto, Amei o infante que não tem segredos, Nem cobre o coração co'os folhos d'alma. Armei as doces vozes da inocência, A ríspida franqueza amei do velho, E as rígidas verdades mal sabidas, Só por lábios senis pronunciadas. V Houve tempo, em que possível Eu julguei no mundo achar Dois amigos extremosos, Dois irmãos do meu pensar: Amigos que compr'endessem Meu prazer e minha dor, Dos meus lábios o sorriso, Da minha alma o dissabor; Amigos, cuja existência Vivesse eu co'o meu viver: Unidos sempre na vida, Unidos - té no morrer. Amizade! - união, virtude, encanto - Consórcio do querer, de força e d'alma - Dos grandes sentimentos cá da terra Talvez o mais recíproco, o mais fundo! Quem há que diga: Eu sou feliz! - se acaso Um amigo lhe falta? - um doce amigo, Que sinta o seu prazer como ele o sente, Que sofra a sua dor como ele a sofre? Quando a ventura lhe sorri na vida, Um a par doutro - ei-los lá vão felizes; Quando um sente aflição, nos braços do outro A aflição, que é só dum, carpindo juntos, Encontra doce alívio o desditoso No tesouro que encerra um peito amigo. Cândido par de cisnes, vão roçando A face azul do mar co'as níveas asas Em deleite amoroso; - acalentados Pelo sereno espreguiçar das ondas, Aspirando perfumes mal sentidos, Por vesperina aragem bafejados, É jogo o seu viver; - porém se o vento No frondoso arvoredo ruge ao longe, Se o mar, batendo irado as ermas praias, Cruzadas vagas em novelo enrola, Com grito de terror o par candente Sacode as níveas asas, bate-as, - fogem. VI Houve tempo em que eu pedia Uma mulher ao meu Deus, Uma mulher que eu amasse, Um dos belos anjos seus. Em que eu a Deus só pedia Com fervorosa oração Um amor sincero e fundo, Um amor do coração. Qu'eu sentisse um peito amante Contra o meu peito bater, Somente um dia... somente! E depois dele morrer. Amei! e o meu amor foi vida insana! Um ardente anelar, cautério vivo, Posto no coração, a remordê-lo. Não tinha uma harmonia a natureza Comparada a sua voz; não tinha cores Formosas como as dela, - nem perfumes Como esse puro odor qu'ela esparzia D'angélica pureza. - Meus ouvidos O feiticeiro som dos meigos lábios Ouviam com prazer; meus olhos vagos De a ver não se cansavam; lábios d'homens Não puderam dizer como eu a amava! E achei que o amor mentia, e que o meu anjo Era apenas mulher! chorei! deixei-a! E aqueles, que eu amei co'o amor d'amigo, A sorte, boa ou má, levou-mos longe, Bem longe quando eu perto os carecia. Concluí que a amizade era um fantasma, Na velhice prudente - hábito apenas, No jovem - doudejar; em mim lembrança; Lembrança! - porém tal que a não trocara Pelos gozos da terra, - meus prazeres Foram só meus amigos, - meus amores Hão de ser neste mundo eles somente. VII Houve tempo em que eu sentia Grave e solene aflição, Quando ouvia junto ao morto Cantar-se a triste oração. Quando ouvia o sino escuro Em sons pesados dobrar, E os cantos do sacerdote Erguidos junto do altar. Quando via sobre um corpo A fria lousa cair; Silêncio debaixo dela, Sonhos talvez - e dormir. Feliz quem dorme sob a lousa amiga, Tépida talvez com o pranto amargo Dos olhos da aflição; - se os mortos sentem, Ou se almas tem amor aos seus despojos, Certo dos pés dó Eterno, entre a aleluia, E o gozo lá dos céus, e os coros d'anjos, Hão de lembrar-se com prazer dos vivos, Que choram sobre a campa, onde já brota O denso musgo, e já desponta a relva. Laje fria dos mortos! quem me dera Gozar do teu descanso, ir asilar-me Sob o teu santo horror, e nessas trevas Do bulício do mundo ir esconder-me! Oh! laje dos sepulcros! quem me desse No teu silêncio fundo asilo eterno! Ai não pulsa o coração, nem sente Martírios de viver quem já não vive.
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